15 de setembro de 2006

«Voo 93» («United 93», 2006), de Paul Greengrass


Mais adaptado à televisão do que ao cinema, este eficiente docudrama foi a mais próxima evocação cinematográfica feita dos terríveis acontecimentos de 11/09/2001. Serve para nos colocar no interior do acontecimento, neste caso do voo 93, o único dos quatro que não conseguiu atingir o alvo almejado pelos terroristas naquele fatídico dia. Tem o poder emocional de retratar com realismo a situação inaudita que está em causa, mas não é propriamente memorável pelo seu conteúdo artístico. Merece a pena ser visto, especialmente por quem se interessa pela recriação (competente) da história e pela revivência de uma situação incompreensível. Mas quanto a uma ficção forte inspirada pelos acontecimentos reais esperemos que o filme de Oliver Stone nos traga mais satisfação...

10 de julho de 2006

Muitas palmas para "Sete Palmos de Terra"


Em dia de último episódio (22h30, 2:), vale a pena fazer um grande encómio à extraordinária série "Sete Palmos de Terra" ("Six Feet Under").
Partindo de um conceito interessantíssimo (o dia-a-dia de uma família que gere uma empresa funerária), a série criou um conjunto de personagens absolutamente fascinantes, de uma densidade humana fora do vulgar, com as quais nos identificamos tanto (às vezes) ou então sentimos através delas aquela noção de "como as coisas são" (em toda a sua intensidade, irredutibilidade ou até em todo o esplendor da sua dimensão patética).
Os diálogos são assombrosos, a realização estupenda, idem para a fotografia e a inesquecível banda sonora. Raramente uma série televisiva nos fez confrontar tanto com a essência do ser humano, da sua relação com os outros e da sua inexpugnável solidão. Os últimos espisódios, então, têm ecoado fundo na alma...

6 de julho de 2006

«Hard Candy» (2005), de David Slade


Interessante thriller com um «look» muito limpo e ar de independente, este é um filme que se segue com interesse, pois nunca sabemos muito bem aquilo que nos espera. Embora tenha a pedofilia como pano de fundo, esta história é mais um jogo psicológico entre duas personagens, e com o espectador, do que uma reflexão sobre o tema. Num espaço bem delimitado, os dois actores (óptimos, especialmente a jovem Ellen Page) entregam-se a um exercício de entrega emocional assinalável. O problema é uma certa falta de verosimilhança em muitas situações. A inteligência (a roçar a genialidade), calculismo, frieza e maturidade de uma criança de 14 anos são excessivos, mesmo querendo ter boa vontade. Para além desse «calcanhar de Aquiles», há também algumas situações que forçam a credibilidade e minam aquilo que se queria um exercício em que se pudesse mergulhar sem pensar que estamos a ver uma representação.
Apesar disso, merece elogios pelos diversos momentos de intensas emoções, pelo brilhantismo de alguns diálogos e pelo sentido de humor. Em suma, um bom filme independente, embora algo sobrevalorizado.

23 de junho de 2006

«O Novo Mundo» («The New World», 2005), de Terrence Malick


A expressão que me parece caracterizar melhor este filme é «diamante em bruto». Quero com isto dizer que se trata de uma preciosidade, mas que lhe falta trabalho de lapidação. As sequências na natureza são muito belas, o tempo que a câmara se demora na exploração de um rosto, uma textura ou um curso de água permite a elevação para um patamar narrativo que dá ao espectador outra fruição. Mas tudo isto parece ser feito com o desprezo pelo aperfeiçoar do todo, ou seja, a montagem não efectuou o seu trabalho de forma a sublimar um arrebatamento que poderia ter existido.
As personagens – à excepção talvez da central, interpretada excelentemente pela jovem Q’Orianka Kilcher (um achado de expressividade e de força natural) – também não têm a dimensão que se exigia, nem são desenvolvidas de uma forma adequada a um filme com laivos de épico. É, pois, nesse sentido, quase um anti-épico.
Claro que Terrence Malick é um cineasta especial e uma vez mais isso nota-se aqui. De qualquer forma, é pena ficar-se com uma noção de desequilíbrio (e de aborrecimento, a espaços) quando se vislumbra tanto talento ao nível do tratamento visual e da transcendência de códigos narrativos e plásticos. É um belo filme que podia ter sido uma obra-prima se não se quisesse fugir a todo o custo ao convencional.

12 de junho de 2006

«O Tempo que Resta» («Le Temps qui Reste», 2005), de François Ozon


Reflexão sobre a morte, o novo filme de François Ozon segue Romain (excelente Melvil Poupaud), fotógrafo de moda com pouco mais de 30 anos e uma sentença fatal como resultado de um cancro disseminado. Romain vai-se despedindo da vida sem redenções eloquentes, fúrias rebeldes ou confissões imperativas. Basicamente, vai-se confrontando com imagens da infância, revê os seus entes queridos, fotografa, e vai sucumbindo sem lutar. Para o espectador, nós/eu, é obviamente incómodo e profundamente comovente (no sentido íntimo do constante mistério que é lidar com o tema do fim da existência) assistir aos últimos momentos da vida desta pessoa/personagem comum, sem exemplarismos morais, virtudes elevadas ou sequer particular simpatia. Nesse âmbito, podemos falar de realismo quando pensamos no perfil psicológico e atitudinal de Romain.
François Ozon executa um trabalho sóbrio de realização, sempre interessado no seu protagonista e respectivo caminho até ao melancólico e poético soçobrar na praia ao entardecer. Mesmo sem um grande argumento ou suficiente desenvolvimento de personagens secundárias ou suas relações (merece destaque a carismática presença de Jeanne Moreau como avó), este é um filme muito interessante, principalmente pelo retrato do protagonista e pela forma como ele nos faz também pensar sobre o efémero.

30 de maio de 2006

«O Código Da Vinci» («The Da Vinci Code», 2006), de Ron Howard


Para ir directo ao assunto, devo dizer que este é um bom thriller, feito para o grande público, mas com matéria suficiente para entreter enquanto nos faz reflectir sobre a História, especialmente a religiosa. Claro que grande parte do mérito do empreendimento vem da história original – o estrondoso fenómeno literário que Dan Brown criou. Não li o livro, mas é óbvio que se trata de um enredo imaginativo, uma deliciosa especulação que fascina por lidar com temas como as sociedades secretas, a arte e a história. Quero crer que é mesmo uma vantagem abordar o filme sem ter lido a obra literária, pois assim se evita a dispersão que sempre acarreta a comparação entre os dois. Vejam-se a propósito as reacções generalizadas de desilusão que os fãs do livro têm manifestado.
É óbvio que Ron Howard é um cineasta menor, rotineiro e incapaz de surpreender, mas tem que se compreender que era isso mesmo que o estúdio pretendia para alterar o mínimo possível aquilo que já era um estrondoso sucesso público. Podemos imaginar o que outro realizador (mais talentoso) faria com este material? Sem dúvida que sim. Mas aquilo que temos é uma história capaz de prender, fabricada com todos os ingredientes à disposição desta indústria.
Quanto à polémica, é contraproducente e acaba por ser quase ridícula. Obviamente que os protestos só geram publicidade gratuita e maior curiosidade. Este filme é tudo menos polémico e não podia ter ar mais ficcional…

4 de maio de 2006

«A Criança» («L’Enfant», 2005), de Luc e Jean-Pierre Dardenne


Emotivo exemplo do realismo contemporâneo (neo-realismo ou o que lhe quisermos chamar), este é um belo filme representativo de um cinema sem artifícios, directo, que conta uma história tão próxima de nós que quase a podemos tocar. Não há modificações em relação ao estilo dos irmãos belgas (veja-se o caso da outra Palma de Ouro, «Rosetta»), sem concessões, que jogam tudo no efeito de verdade que conseguem retirar dos seus actores, perseguindo-os implacavelmente de câmara ao ombro, perscrutando-os em grandes planos, acompanhando-os nas suas deambulações.
Neste caso, temos um pequeno delinquente, Bruno, que se vê a braços com um filho para o qual não está preparado. A sua falta de responsabilidade e de maturidade fazem com que coloque o bebé no centro dos seus esquemas para ganhar dinheiro sem trabalhar, mas a namorada, Sonia, não é da mesma estirpe e entra em colapso com a perda do bebé. Mas a redenção é possível…
Para além de sermos tocados por aqueles seres algo marginais, ainda em crescimento, mas inicialmente felizes, impressiona a forma como nos interessamos pelas suas opções, atitudes e trajectos, num percurso que quase se transforma num filme de suspense. É uma história de amor entre dois jovens (excelentes as sequências carnais sem sexo que quase tiram o fôlego ao casal), um retrato da realidade suburbana europeia das margens, uma ilustração do poderoso instinto materno (e da paternidade indiferente?)… Enfim, um conto da contemporaneidade onde não faltam os sinais do progresso (o uso do telemóvel é central) nem as características humanas que permanecem. Só não se percebe porque estreia quase um ano depois da consagração máxima em Cannes...

28 de abril de 2006

«Infiltrado» («Inside Man», 2006), de Spike Lee


Desde o genérico inicial ao som de um surpreendente «Chaiyya Chaiyya - Bollywood Joint» que somos levados para uma vibrante viagem até a um assalto que serve de catalizador para a energia que existe concentrada nas personagens do filme e na própria cidade de Nova Iorque. Temos um thriller cheio de estilo, algo à semelhança de «Ocean’s Eleven» e sequela, onde o divertimento é grande e a pertinência sócio-económico-político-moral também. O argumento mantém o suspense e os níveis de verosimilhança em alta, o que é absolutamente decisivo para o excelente resultado final. Já se sabe, Spike Lee é grande (em talento, não em tamanho) e aqui tem mais uma excelente realização, que consegue manter o cunho autoral num contexto de cinema mais industrial. O retrato do caldo de culturas que é Nova Iorque está absolutamente delicioso, assim como as referências às paranóias securitárias pós-11 de Setembro. A ironia também é sempre elevada, como convém, destacando-se também as referências cinéfilas (sempre um petisco quando bem inseridas). Quanto aos actores, dão também o seu importante contributo, destacando-se o fabuloso Denzel Washington e Clive Owen. Em síntese, temos uma espécie de mistura de «Um Dia de Cão» com «Ocean’s Eleven» e «A Última Hora». Um grande filme para quem quer ser entretido com doses refinadas de inteligência e humor.

21 de abril de 2006

«Breakfast on Pluto» (2005), de Neil Jordan


Transposição fílmica do romance homónimo de Patrick McCabe, a última obra de Neil Jordan é uma pérola que importa descobrir, apesar de infelizmente estar a passar ao lado da visibilidade. Às vezes, parece um filme de Almodóvar, outras vezes parece uma ópera ou um musical. Combina aquela dimensão realista de um certo cinema britânico (algum Mike Leigh ou o Alan Parker de «Os Commitments», por exemplo) com um humor irresistível e aquele tempero extravagante associado à cultura GLBT. O protagonista – excelente Cillian Murphy – é um jovem com alma de mulher que anda uma vida à procura da mãe biológica (a sua obsessão) e acaba por descobrir o pai. A sua digressão em direcção às suas origens tem tanto de comovente quanto a sua atitude positiva perante a vida. A sua história é contada em capítulos que vão compondo um todo dramático espesso, ao mesmo tempo que pintam um interessante retrato de uma época (essencialmente os anos 70) cheia de convulsões sociais e artísticas. Profundamente divertido e humano, este filme conta ainda com uma banda sonora magnífica, que estabelece o tom certo para esta desconcertante aventura romântica.
Mais um grande filme de Neil Jordan para juntar à sua significativa colecção («A Companhia dos Lobos», «Jogo de Lágrimas», «Entrevista Com o Vampiro», «O Fim da Aventura», etc.).

7 de abril de 2006

Uma História de Violência (“A History of Violence”, 2005), de David Cronenberg


Excelente filme sobre a família, a natureza humana, o cinema e (hélas!) a violência. Outra coisa não seria de esperar de um dos maiores realizadores no activo. Cronenberg é dos poucos (juntamente com Lynch, Von Trier e poucos mais – entre os que chegam ao grande público) a destilar uma visão realmente original nos seus filmes, muitas vezes desconcertantes.
Mas esta sua última obra afasta-se das psicologias retorcidas (o sublime “Crash” ou o insólito “Naked Lunch”), da dimensão fantástica (os magistrais “A Mosca” ou “Existenz”) e dos estudos mais ou menos “underground” que misturam os dois sub-géneros anteriores (“Os Parasitas da Morte”, “Videodrome”, etc.). É verdade que este é talvez o seu filme mais acessível ao nível da narrativa e dos pormenores que edificam as suas personagens.
É, se quisermos, uma mistura entre o filme de gangsters e o drama familiar, resultando ao mesmo tempo numa reflexão sobre a animalidade do homem, sobre os seus impulsos e também sobre as próprias convenções do cinema. A realização é espantosa e os actores fabulosos. Um grande destaque vai para Maria Bello, magnífica; e William Hurt, estonteante, dramático, assustador, patético (um dos melhores papéis curtos de que há memória). Mas também Viggo Mortensen, que não é actor excepcional, consegue uma grande interpretação, já para não falar na revelação que é Ashton Holmes e na confirmação de Ed Harris.
“Uma História de Violência” consegue ser um thriller linear para ser acompanhado pelas plateias maciças e ao mesmo tempo um estudo íntimo sobre os mecanismos humanos básicos que escapam à pura racionalidade (não passaria por aí uma eventual sequela de “Basic Instinct” dirigida por Cronenberg?).
É incrível como há semelhanças entre as igualmente intensas cenas de sexo, de violência e de drama familiar, uma orquestração que nos dá por breves instantes um vislumbre sobre o que é ser-se humano.