26 de novembro de 2004

"Os Diários de Che Guevara" (The Motorcycle Diaries, 2004), de Walter Salles

Belíssimo exemplo da viagem iniciática que deixa uma marca indelével na alma dos viajantes. Contornando o comercialmente aproveitador e erróneo título português, chegamos a um filme que conta a odisseia de Alberto e Ernesto através da América do Sul, maioritariamente feita na motocicleta que de poderosa só a ironia tinha. Contada com enorme sensibilidade humana (o desenvolvimento da amizade entre os dois e a consciência social larvar) e cromática (excelente a fotografia de Eric Gautier - e que paisagens recorta), esta história revela o estado das coisas numa América Latina artificialmente dividida pela política e pelos estratos sociais.
São muito injustas algumas leituras do filme à luz de preconceitos políticos alicerçados na figura que se viria a tornar o Ernesto Guevara deste filme (o Che); leituras essas que, na minha opinião, turvam a visão daquilo que esta fita tem de essencial e que não é nada de panfletário. Mas ao contrário de muitas opiniões, considero este um filme altamente político. Não o serão todos os verdadeiros grandes filmes? Que outra forma igualmente potente existe de ser político do que ir ao âmago da consciência humana?
Os actores têm um óptimo desempenho: se Garcia Bernal se cimenta como estrela latina maior da Meca do cinema, Rodrigo de la Serna é uma deliciosa revelação como o amigo Alberto Granado (de quem vislumbramos o rosto real na actualidade no final do filme - e os olhos que misturam desencanto com uma réstea de utopia).
Referência final para o extraordinário epílogo a preto e branco condensando os retratos humanos daquela América sofredora, nitidamente influenciado pelo trabalho fotográfico de Sebastião Salgado.

9 de novembro de 2004

"Colateral" (Collateral, 2004), de Michael Mann

Michael Mann filma a noite de Los Angeles com uma luminosidade inaudita. Embarcamos então numa paisagem nocturna singularmente clara para acompanhar o trajecto de morte que um "cool" (frio, mas também estiloso) assassino profissional (Tom Cruise) vai empreender com a ajuda de uma possível vítima colateral (o "taxista" Jamie Foxx).
Como é habitual na obra de Mann (à excepção do supremo "Heat"), fica-se sempre muito próximo do grande filme ("O Informador", "Ali"), mas há qualquer coisa que o detém quando quase alcança um patamar superior. Aqui o problema talvez seja a ocorrência de algumas inverosimilhanças dispensáveis (para além do ar de T-1000 de Cruise na perseguição - óptima - de Metro). Mas não apetece muito falar de defeitos numa fita tão agradável de seguir como uma viagem nocturna de táxi onde se congeminam os mundos que podem ser. Por último, mas não menos importante: a banda-sonora é bela e os actores estão muito bem afinados.

3 de novembro de 2004

I can't believe in it!

Uma pausa nas fitas para voltar à tragicómica realidade... Não é que George W. Bush - o mentiroso presidente dos EUA que com a sua política do "far-west" tem tornado o mundo cada vez mais perigoso e dividido - vai ser reeleito para o cargo?!
Confesso a minha estupefacção. Para mim, o seu rosto (podem chamar-lhe preconceito, mas é de tal forma evidente...) é suficiente para abafar qualquer tentativa séria de uma carreira política. Mas enfim, ultrapassemos isso e centremo-nos apenas nos factos, na obra e não no homem. Qual é o resultado? Desastroso, sem dúvida. Mas não foi essa a conclusão dos norte-americanos. Pelos vistos, as evidências não são assim tão evidentes.
Parece lógico que neste segundo mandato a sua administração não voltará a cometer os mesmos erros (talvez cometa outros piores), mas ainda assim é assustador ver entregue o mundo (macro-económica e politicamente falando) de bandeja a tão insólita (porque caricatural) e perigosa personagem. Às vezes, parece haver uma inversão entre a realidade e a ficção. Veja-se a figura de Bush sem reacção durante uma eternidade quando o informam do segundo atentado no 11 de Setembro (cf. "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore) e agora comparem com o presidente Palmer da série "24" (actualmente em exibição na 2). A quem confiariam a sala oval?
O mundo é de uma ironia implacável. A mesma terra que cria fantásticas personagens ficcionais pela sua complexidade e criatividade elege para liderar os seus destinos uma criatura cuja unidimensionalidade e irresponsabilidade faz temer pelo futuro de todos. Assim não seja!