20 de abril de 2004

«21 Gramas» (21 Grams, 2003), de Alejandro González Iñarritu

A morte, é bem sabido, não é um tema com que as pessoas nas nossas sociedades se sintam à vontade para lidar. Nunca é algo realmente interiorizado, fazendo parte dos lugares comuns dizer que ela é certa, mas nunca é realmente aceite e permanece como um buraco negro, misterioso e temível, centro dos discursos das religiões, mas apenas preocupação real dos homens quando a têm de enfrentar – directamente ou através dos entes queridos.
Falo disso porque «21 Gramas» transpira morte por todos os poros e, por isso, é muito incómodo. Aquelas personagens que nos perturbam (especialmente o magnífico trio constituído por Sean Penn, Benicio Del Toro e Naomi Watts) sentem que depois da morte a vida não continua, é outra coisa que continua, mas não a vida. E o inferno está na mente.
Alejandro González Iñarritu, depois da auspiciosa estreia com «Amor cão», confirma o seu talento de contador de histórias e de director de actores, conduzindo uma espécie de tripla via sacra contada em fragmentos cuja cronologia não é linear, mas antes baralhada para o espectador encaixar como um puzzle. A montagem fabrica um todo cristalino, apesar das sinuosidades internas, que nos arrebata pela densidade emocional e humana que transmite. É um filme muito duro, daqueles com que saímos com uma sensação de mal-estar, mas plenamente conseguido.
Em suma, muito bom.

14 de abril de 2004

«Alguém Tem Que Ceder» (Something’s gotta give, 2003), de Nancy Meyers

Uma comédia muito divertida e saborosa, nitidamente vocacionada para públicos maduros. A realizadora Nancy Meyers não tem um talento muito destacado, mas as excelentes interpretações e o argumento bem elaborado (e com algumas pérolas) aguentam o filme cabalmente.
Já se sabe que os grandes actores fazem maravilhas e muitas vezes – é o caso – carregam o filme às costas. Aqui, Jack Nicholson e Diane Keaton dão um show de representação e ofuscam todos os outros membros do cast. Perdão, Frances McDormand é inofuscável.
Nicholson, já se sabe, é um monstro da representação, e aqui dá-nos mais um saboroso retrato de um homem de meia idade que conquista mulheres jovens, mas nunca se deixa conquistar. Nalguns momentos, faz lembrar a sua personagem de «Melhor é Impossível», nomeadamente quando demonstra a sua incapacidade para lidar com o nascimento do amor, sentimento que não provara antes. É muito divertida também a forma como o actor se expõe quase ao ridículo para sublimar o efeito humorístico – é vê-lo todo despenteado a cambalear com a bata de hospital!...
Diane Keaton, para além de demonstrar a beleza e o charme que uma mulher de meia-idade pode ter, tem um dos melhores papéis da sua carreira, a actuar sempre no limiar da auto-irrisão pontuada por muitos momentos sensíveis.
Apesar de conter alguns clichés e momentos menos inspirados, como o inverosímil final com o piroso nevão, esta é uma comédia que vale a pena. Até para nos lembrar que nem só os jovens vivem o sexo e as relações com ardor e intensidade. Uma cena irresistível: Nicholson e Keaton vão para a cama e ela tem que lhe medir a tensão antes do acto; ele pergunta «Contracepção?», ela responde «menopausa».
Em suma, bom.

10 de abril de 2004

Saramago, o lúcido

Dá sempre gosto ouvir alguém com um discurso ambicioso, não alinhado, descomprometido, preocupado com o estado do mundo e do país, apostado em fomentar a discussão e rejeitar a acomodação.
É isso que o nosso Nobel José Saramago tem feito a propósito da promoção do seu último livro – «Ensaio Sobre a Lucidez». Põe em causa a aparente democracia em que vivemos e denuncia aquilo que todos sabem, mas ninguém ousa contestar: a subjugação do poder político pelo poder económico, responsável pelas assimetrias sociais que, ao contrário do que os fazedores de opinião nos querem fazer crer, não são inevitáveis e muito menos são apenas os custos do menos mau dos sistemas, a democracia.
O voto – em branco ou não - continua a ser uma arma, mas às vezes é necessário que nos venham lembrar. Num tempo em que são os media que, de uma forma ou de outra e com maior ou menor influência, elegem os responsáveis políticos, é importante que não nos esqueçamos de um pressuposto fundamental: não nos devemos limitar à condição de espectadores da nossa própria história.

6 de abril de 2004

«À Dúzia é Mais Barato» (Cheaper by the dozen, 2003), de Shawn Levy

Claro que este filme é o que parece: uma comédia industrial de Hollywood sem nenhum tipo de originalidade nem de surpresa. Tem um argumento moralizador e cheio de boas intenções sobre a família média norte-americana e uma realização convencional que não pretende tirar o tapete ao espectador que aguarda divertimento despretensioso e uma oportunidade de levar as crianças ao cinema, se as tiver .
Mas, que diabo, a verdade é que me diverti a valer com o filme, que querem? Não tenho que me sentir culpado disso, claro, pois nem todo o cinema tem que ser sério.
Trata-se de uma comédia com muitos momentos hilariantes (à base de humor físico, é certo), diversos gags certeiros e diálogos a condizer, miúdos castiços e um vizinho beto que é um verdadeiro cromo, um Steve Martin ao seu melhor nível (capaz de fazer rir e de ser credível como pai) e um ritmo a condizer.
Faz lembrar em muitos aspectos «Sozinho em casa» e todo o seu "slapstick", com os miúdos a darem água pela barba aos adultos, que não conseguem canalizar a engenhosidade ingénua daqueles para propósitos criativos mais produtivos do que atiçar os cães à roupa interior do "inimigo".
Um filme que devia ser apoiado pela "Associação das Famílias Numerosas", pois faz a apologia de uma família com 12 (!) filhos, defendendo, apesar de todas as vicissitudes, a sua viabilidade sem prejuízo da sanidade de cada elemento (já que não se pretende uma história realista)... Ora aí está talvez a solução para, de uma vez só, contribuir para o equilíbrio demográfico e acabar com uma existência monótona e cinzenta – haja dinheiro para isso.
Um bom filme para levar os miúdos e ter uma terapia de grupo de boa disposição.
Em suma, bom.