19 de agosto de 2005

"Charlie e a Fábrica de Chocolate" (Charlie and the Chocolate Factory, 2005), de Tim Burton

É difícil contornar o lugar comum da analogia doceira, por isso, tenho que declarar que o último filme do mago Tim Burton é uma delícia equiparável a uma boa barra de chocolate.
A referência mais óbvia é «Eduardo Mãos de Tesoura», mas aqui existe a necessária (dentro do possível) fidelidade ao livro que lhe deu origem da autoria de Roald Dahl. É um conto infantil, com uma moralidade demasiado óbvia e clássica, mas nem por isso está isento de algumas suversões, como é apanágio de Burton (lembre-se a este nível o maravilhoso «Estranho Mundo de Jack»). Veja-se como há um gozo sinistro na forma como se encena a «eliminação» dos miúdos impuros.
Johnny Depp é sensacional, coleccionando grandes papéis atrás de grandes papéis, mas o grande trunfo do filme é mesmo toda a concepção visual. Uma grande realização, fotografia e direcção artística de antologia. Atente-se que o director artístico Alex McDowell foi responsável por trabalhos tão brilhantes quanto os de «O Corvo», «Clube de Combate», «Relatório Minoritário» ou «Terminal de aeroporto».
Como diz bem Jorge Leitão Ramos, é insólito que um filme com estas características seja um enorme sucesso de bilheteira, já que não é um típico filme para crianças tipo animação, muito menos para os cruciais adolescentes, nem sequer para os adultos interessados em histórias mais realistas ou profundas. Isto, claro, segundo os parâmetros que ditam as generalizações sobre as audiências. A grande lição é que, por vezes, para um filme ter sucesso basta ser… bom. Já agora, muito bom.

9 de agosto de 2005

O insustentável desprezo por distribuir

Olhar para o (arrepiante) conjunto de estreias cinematográficas da última semana (a pior do ano?), fez-me pensar no material que as distribuidoras portuguesas deperdiçam, dando honras de estreia em sala a (sub-)produtos que nem sequer é difícil adivinhar que se destinam ao fracasso comercial. Temos que aceitar que há filmes maus que inevitavelmente terão que estrear por terem potencial comercial, mas os filmes maus que não têm esse potencial não poderiam ser substituídos por filmes bons, ou pelo menos interessantes? É sabido que as premissas negociais com os grandes estúdios «obrigam» a comprar filmes pouco interessantes para se poder ficar com os interessantes, mas não obrigam a estreá-los. Em contrapartida, continuam inéditos muitos filmes que aliam a qualidade com um assinalável potencial de sucesso, como João Lopes lembra na última edição da «Premiere» a propósito de «O Detective Cantor» mais o seu estrelado elenco.
Se as distribuidoras têm dificuldade em encontrar «melhor produto», perguntem-nos (a nós, cinéfilos) que nós daremos muitas sugestões. Só assim rapidamente posso citar alguns exemplos de filmes que tinham todo o potencial para estrear em sala e não estrearam, e reporto-me apenas aos anos de produção de 2003 e 2004 (pois os de 2005 ainda podem estrear):

«The United States of Leland» (2003), de Matthew Ryan Hoge, com Don Cheadle, Ryan Gosling, Chris Klein, Jena Malone, Lena Olin e Kevin Spacey

«The Snow Walker» (2003), de Charles Martin Smith, com Barry Pepper e James Cromwell

«Napoleon Dynamite» (2004), de Jared Hess, com Jon Heder

«Layer Cake» (2004), de Matthew Vaughn, com Daniel Craig

«Two Brothers» (2004), de Jean Jacques Annaud, com Guy Pearce e Freddie Highmore

«Shaun of the Dead» (2004), de Edgar Wright, uma comédia romântica com zombies!


E não me venham com a «silly season», pois os espectadores não são assim tão sillies…

4 de agosto de 2005

«Guerra dos Mundos» («War of the Worlds», 2005), de Steven Spielberg

Uau! É a primeira palavra que me vem à cabeça para abordar esta «Guerra dos Mundos». É um dos mais impressionantes e realistas filmes feitos sobre um cenário apocalíptico. Ou seja, faz-nos sentir dentro daquele espaço em decomposição e vibrar (e desesperar) com o que seria se tal evento sucedesse no mundo real.
Que Spielberg é mágico, já se sabia há muito, mas aqui tem mais uma prova do seu talento. A colocação em cena das máquinas de extermínio extraterrestres é absolutamente notável, dando forma aos maiores medos humanos relacionados com a existência de vida fora da Terra. Se é verdade que a idealização dos elementos alienígenas e respectivo «modus operandi» vem de H.G. Wells e do seu clássico literário com mais de um século, não é menos verdade que a transposição dessa tese para os nossos dias é feita de forma quase perfeita graças à excelente realização e ao brilhantismo dos efeitos especiais. Nessa matéria, atrevo-me a dizer, a maior parte dos filmes com ambições semelhantes empalidecem imediatamente em comparação.
«Arrumado» que está o filme (e que filme!) que diz respeito à invasão de um ponto de vista macrocósmico, contextual, puramente devedor do espectáculo visual, passemos ao outro, ao tocante filme familiar que tem a particularidade de se desenrolar num pano de fundo tão radical e desesperado. Ora, esse é o coração da «Guerra dos Mundos», colocando em perspectiva a relação entre pais e filhos de um ponto de vista de uma desarmonia profundamente actual. Os actores corporizam muito bem essa relação precária (e magoada) e Spielberg sabe conduzi-los em direcção à emoção triunfante. Destaco duas cenas estupendas: a primeira quando a filha (Dakota Fanning, excelente) observa os cadáveres no rio e a segunda quando Ray e o filho discutem à passagem de uma caravana militar. A história não está isenta de pequenas incongruências e inverosimilhanças, mas a sensação global é de que estivemos à beira do fim do mundo e sobrevivemos. Nós, espectadores, com as personagens, e talvez com isso saibamos reflectir melhor sobre as nossas prioridades.
Em suma, é necessário que o mundo esteja (literalmente) a acabar para que aquela família se possa reencontrar. Parece ser esse o pressuposto mais belo deste inesquecível filme.

25 de julho de 2005

"Batman – O Início" (Batman begins, 2005), de Christopher Nolan

Aquilo que mais me agradou nesta nova incursão pelo mundo do famoso herói com fato de morcego foi a forma não estereotipada como foi feita a sua abordagem cinematográfica. Não se vê aqui a maioria dos clichés presentes em muitas adaptações de personagens da BD, conseguindo também ser diferente dos universos criados previamente para a mesma personagem por Tim Burton e Joel Schumacher. Desde logo, o filme faz uma descolagem da BD - que se pretende realista - para dar mais espessura psicológica a Bruce Wayne e para trazer explicações para os seus actos à luz de um cenário compreensível pelos padrões do cinema não fantasioso (chamemos-lhe assim para o distinguirmos daquele que se assume passar-se num mundo com outras regras, característico das adaptações da BD). Esse aspecto é conseguido e fornece sequências de algum empolgamento. Contudo, aquilo que era uma inovação é também um risco. Isso nota-se e gera algum desequilíbrio global, acentuado por uma montagem e realização que nem sempre são os mais adequados.
É muito interessante ver um Batman destroçado e em conflito interior, no limiar de uma passagem para o «lado negro», mas isso nem sempre tem total correspondência com o mundo que está à sua volta. Da mesma forma, é interessante ver uma Gotham alternativa, uma espécie de Nova Iorque decadente e futurista.
É essa tentativa de imbricar o universo da BD com o mundo real que traz a mais-valia a este novo «Batman» que, contudo, não faz esquecer os grandes filmes de Tim Burton. Mas é um filme muito interessante.

22 de julho de 2005

Sabe o que é a Hypnerotomachia Poliphili?

É um dos livros mais fascinantes e misteriosos da história da literatura. Com mais de 500 anos, é um épico pagão originalmente publicado em Veneza e que fez as delícias de coleccionadores e historiadores durante séculos.
Para quem leu o romance de Ian Caldwell e Dustin Thomason "A Regra de Quatro", este nome não será estranho, já que foi esta obra que o inspirou, gerando um dos maiores sucessos editoriais dos tempos mais recentes.
Agora, para todos os fãs de "A Regra de Quatro" e para os curiosos sobre a Hypnerotomachia Poliphili, chega ao mercado "A Verdadeira Regra de Quatro", escrito pelo Professor Joscelyn Godwin, tradutor pela primeira vez da Hypnerotomachia para o inglês.
Publicado pelas Edições K, na sua estreia editorial, "A Verdadeira Regra de Quatro" descodifica toda a trama de "A Regra de Quatro", distinguindo aquilo que é realidade daquilo que foi romanceado, explicando quem foi o verdadeiro autor da Hypnerotomachia e qual o seu significado, etc.
"A Verdadeira Regra de Quatro" é um "must" para todos os que gostaram de "A Regra de Quatro" e para todos aqueles que querem conhecer a Hypnerotomachia Poliphili – um dos mais belos livros do mundo.
Um livro a não perder!

13 de julho de 2005

«Colisão» («Crash», 2005), de Paul Haggis

Um dos grandes filmes do ano, «Colisão» tem o mérito de urdir uma teia dramática poderosa que nos envolve e contagia com o seu tom de diagnóstico da alma humana. É antes de tudo um grande argumento (da autoria do realizador, que também escreveu o belíssimo «Million Dollar Baby»), potenciado pela eficaz realização, muito boa direcção de actores e banda-sonora que lhe acentua o tom elegíaco. Começa por parecer um estudo sobre o racismo (e esse é o seu tema transversal), mas quando a história avança vemos que o filme o transcende para criar um quadro bem mais panorâmico. Um dos aspectos fantásticos do filme é que nunca reduz as personagens a uma dimensão: elas são sempre complexas, seres que se confrontam consigo próprios, com as suas crenças, com os outros e com as situações com que se deparam. Genial é a forma como se prova que um agressor pode ter a oportunidade de salvar a sua vítima noutro contexto e, com isso, atingir a redenção; ou como alguém que se reconhece na tolerância seja levado ao assassínio pelo seu insuspeito preconceito. Numa história cheia de sequências de grande emotividade, destaca-se a forma exemplar como nos é mostrado que a vida é (também) feita de grandes coincidências (as balas de pólvora seca são um achado) e pequenos pormenores.
Os actores encaixam-se de forma exímia nas suas personagens, que não têm aqui a importância hierárquica tradicional (não há verdadeiros protagonistas nem verdadeiros secundários), embora me apeteça destacar Matt Dillon numa presença tão forte como já não havia memória.
Ao nível da estrutura e do sentimento, embora isso não seja necessariamente um defeito, nota-se uma semelhança enorme entre «Colisão» e «Magnólia», ainda por cima exponenciada por uma banda-sonora que remete automaticamente para Aimee Mann. Contudo, há outra referência que é «Traffic», de Soderbergh, na forma como um cruzamento de histórias vai pintando um quadro geral sobre um problema (neste caso, o racismo; no outro, a droga), incrustando-o bem no interior da condição humana, a salvo de demagogias. Afinal, só pode dizer que não possui uma réstia de racismo quem não é humano. Por outras palavras, errar é humano. E é isso que é (ou pode ser) fatal.

7 de julho de 2005

"Star Wars: Episódio 3 – A Vingança dos Sith" (2005), de George Lucas

O que se pode dizer do muito aguardado episódio que fez a ponte entre a trilogia antiga (1977-1983) e a nova (1999-2005) de «Star Wars» é que esteve à altura dos pergaminhos desta saga galáctica que marcou para sempre a cultura popular. A densidade psicológica de Vader/Annakin não tem precedentes nos outros filmes da série e é ela que resgata o filme do puro escapismo e nos coloca em territórios, chamemos-lhes assim, mais «reais». De facto, a tragédia de um homem bom que vende a alma ao diabo por pensar ser a única forma de defender quem ama é clássica, universal e, por isso, uma excelente maneira de resolver o enigma por trás de um dos mais carismáticos vilões da história do cinema.
A história central vem, por essa razão, dar um suplemento emocional a uma epopeia que mistura a ficção científica com a telenovela, onde até aqui reinavam os efeitos especiais e as criaturas mais ou menos exóticas. É importante destacar a este respeito a interpretação mais perturbante do filme – a do fabuloso Ian McDiarmid, que coloca o seu Senador Palpatine numa digna antologia de personagens maléficas. Ficámos assim com um excelente filme para completar a peça que faltava num puzzle cujo fascínio infantil está para durar.

30 de junho de 2005

«Reino dos Céus» («Kingdom of Heaven», 2005), de Ridley Scott

Ridley Scott, prolífico realizador de elevados recursos estilísticos (vejam-se «Alien», «Blade Runner» ou «Thelma e Louise»), não podia deixar os seus créditos por mãos alheias. Assim, criou com este épico mais um momento (visualmente) espectacular na sua filmografia. O problema é que se preocupou pouco com a parte dramática, permitindo o desequilíbrio total entre a dimensão plástica e a dramatúrgica/interpretativa. Se é um facto que possui um elenco com bons actores, caiu na armadilha de ter como protagonista um actor tão fraco quanto Orlando Bloom. Mas para além deste, os outros também não têm muita oportunidade para gerar momentos emocionantes pelo lado dramático, ficando-nos apenas pela emoção das batalhas e dos momentos de inspiração da câmara sempre talentosa de Scott.
Relativamente ao argumento, é óbvia a tentativa de fazer uma colagem com a actualidade para veicular uma mensagem utópica de convivência pacífica entre os povos e as religiões, mas é escusado criticar os erros de fidelidade histórica. Tal como em muitos outros casos, esta é uma visão inspirada por acontecimentos reais, não uma tentativa de descrever com rigor os factos (para isso existem outros objectos audiovisuais com outras ambições). É muito interessante discutir as diferenças entre ambos (filme e história), mas errado apontá-las como defeito do filme.
Em resumo, um bom espectáculo de aventuras que não conseguiu conciliar o deslumbre cénico com o emocional, ao contrário do que aconteceu com «Gladiador».

29 de junho de 2005

"A Intérprete" ("The Interpreter", 2005), de Sydney Pollack

Thriller competente como tem sido referido, este filme é o exemplo acabado do produto industrial de excelente qualidade, mas ao qual falta qualquer coisa para atingir um outro patamar ao nível da experiência emocional do visionamento. Os actores são de primeira – o par protagonista é mesmo da nata da interpretação contemporânea -, a realização é segura, o argumento consegue tocar aspectos interessantes e importantes do nosso quotidiano e gera as necessárias ambiguidades para o suspense. Apesar de não atingir a transcendência, filmes destes são sempre bem-vindos.

12 de maio de 2005

«A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich» («Der Untergang», 2004), de Oliver Hirschbiegel

É importante começar por dizer que o filme mais polémico da actualidade é altamente aconselhável, quanto mais não seja enquanto documento (ainda que ficcionado) da realidade histórica. Independente das qualidades estritamente cinematográficas, que as tem (embora não seja um filme formalmente original nem fulgurantemente clássico), «A Queda» tem o mérito incontornável e fascinante de nos colocar dentro do bunker onde se desenrolaram os últimos dias da personagem mais odiada e diabólica do século XX. De facto, Hitler é-nos mostrado como um homem, e é bom lembrar-nos disso, já que a história o tem figurado como alguém exterior à própria condição humana. A sua personalidade é aqui revelada com mais acuidade e atenção do que é habitual, mas ainda assim permanece um mistério pela sua estratosférica arrogância e crueldade. Bruno Ganz é estupendo a compor o retrato desta terrível personalidade cujos actos e dissertações se limitariam ao risível se não tivessem sido responsáveis por uma onda inexplicável de terror e arbitrariedade. Se não conseguimos evitar a lembrança do genial Chaplin em «O Grande Ditador» aquando dos acessos de raiva do Fuhrer, também sentimos genuinamente que algumas das suas ideias xenófobas e aberrantes do ponto de vista moral se encontram latentes em muitas pessoas (e bem presentes em algumas) nos nossos dias.
Este filme permite constatar muitas coisas interessantes. Por exemplo, que o regime nazi, pelo menos nos seus últimos tempos, assentava muito na devoção e lealdade (com excepções, claro) com que a maior parte do aparelho de estado servia Hitler. De outra forma, este teria sido pura e simplesmente deposto e desautorizado, tais eram as ordens ridículas e as estratégias dementes que proferia. Outra coisa era o magnestismo de Hitler, também causa do factor anterior, que fazia com que muitos inocentes o seguissem sem interrogação (veja-se a sua secretária, nas memórias da qual se baseia em parte o filme).
Em suma, é um filme obrigatório para discutir história e uma possibilidade única de sermos colocados num cenário onde se desenrolaram acontecimentos decisivos na história da nossa civilização. É importante não esquecer e estar sempre atento.