O último filme de Michael Moore é o objecto polémico por excelência (já o era o excelente "Bowling for Columbine", mas menos), o que desde logo abona a seu favor, pelo lado comercial (já ultrapassou a impressionante marca dos 100 milhões de dólares) e pela capacidade de fomentar debates interessantes (sobre a política, especialmente, e não só a norte-americana). Porquê? Porque, usando as técnicas clássicas do documentário, ousa descomplexadamente tirar partido, ser parcial, usando os factos para veicular uma opinião (necessariamente pessoal, logo, discutível). Claro, a sua opinião é que o presidente norte-americano George W. Bush é incompetente (para além de ilegítimo no cargo) e a política da sua administração é prejudicial para os EUA e o resto do mundo. Obviamente discutível, essa opinião é construída com base em factos reais apurados pelo realizador ou do domínio público.
Se este filme fosse uma peça jornalística, seria sem dúvida um editorial (ou um artigo - desenvolvido - de opinião), nunca uma reportagem. Ou seja, o autor usa a verdade para emitir , com maior ou menor talento, a sua interpretação dela. O objectivo é à partida assumido. Parece-me ser isso que irrita tanto alguns dos detractores de "Fahrenheit 9/11". É que acusar Moore de manipulador seria, neste contexto, semelhante a fazer o mesmo com os directores de jornais quando escrevem editoriais ou com os cronistas das mesmas publicações. Monsieur de La Palisse, n'est-ce pas?
Posto isto, acho que os evidentes méritos artísticos da fita colidem com alguma falta de subtileza (ou mesmo grosseria) no tratamento de algumas questões. Por exemplo, satirizar a lista de países da coligação que apoiou a invasão do Iraque citando apenas o Palau, a Islândia, a Costa Rica, etc., quando sabemos que países como o Reino Unido e a Espanha também a integravam, é uma opção obviamente falhada. Contudo, no geral, é hábil a montagem que Moore faz de imagens de arquivo, entrevistas e outros materiais. Mais, é espantoso como consegue - combinando horror, humor e drama - fazer de um documentário, invulgar, é certo, um filme-pipoca para entreter as massas dos multiplexes. E, esperemos nós, fazê-las pensar (espera Moore, votar contra Bush nas eleições de Novembro).
Saliento, por fim, duas sequências impressionantes. Primeiro, as imagens inéditas de Bush sem saber o que fazer durante largos minutos quando lhe contam ao ouvido do segundo embate sobre as torres gémeas do World Trade Center (só essa cena seria certamente o seu atestado de óbito político em qualquer país normal). Depois, o desespero de uma mulher iraquiana perante o violento ataque sofrido por seus familiares civis (só essa cena seria certamente o suficiente para atestar da injustiça daquela guerra).
Impressionante é ainda pensarmos nas teias de interesses económicos que se tecem em redor do poder político e que dele se alimentam (nos EUA como em qualquer país subjugado pelo poder económico). Neste capítulo, o filme é particularmente eficaz a desmascarar ligações perigosas ao mais alto nível e a mostrar a imoralidade já conhecida, a de que a guerra pode ser uma indústria lucrativa. Questões essenciais do nosso mundo.
Questão menor é saber se o filme mereceu ou não a Palma de Ouro. Na minha opinião, mesmo não conhecendo os outros filmes em competição, ousava responder que não, pois a sua qualidade não é excepcional. O seu grande mérito é mesmo o de fomentar discussões. E esse não é nada pequeno.
Em suma, bom.
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