“Compreender o mundo, explicá-lo, desprezá-lo, são coisas que poderão agradar aos grandes pensadores. Mas eu considero mais importante amar o mundo, não o desprezar, não o odiar nem me odiar, observá-lo, a mim e a todos os seres com amor e admiração e respeito.”
Siddhartha, de Hermann Hesse
Serve esta introdução para situar este sublime filme no coração do Budismo. É esse o lugar que ocupa, mas é extraordinária a forma como não codifica para não excluir. Simplicidade de meios e de argumentos para atingir objectivos artísticos e espirituais de excelência. A história é uma lição de vida, harmonizando o homem com a natureza, a parte com o todo, a beleza com a sua negação.
A sabedoria é algo que não se consegue comunicar: pode-se vivê-la, aprender com ela, mas não explicá-la de forma lógica. É um caminho que tem que ser percorrido e acumulado. Como este filme. Não é possível comunicar por qualquer jogo de palavras – por mais talentoso que seja – a abrangência, a veracidade, a harmonia que nos transmite. Só passando pela experiência é que podemos vislumbrar um pouco da consciência universal que os budistas preconizam e, com isso, aceder à noção de vida como ciclo de impermanência. Atravessado por imagens de uma beleza purificadora, este é um filme que vale por 100. 100? Por 1000!
Essencial, em todos os sentidos.
Obra-prima.
31 de agosto de 2004
19 de agosto de 2004
"Fahrenheit 9/11" (2004), de Michael Moore
O último filme de Michael Moore é o objecto polémico por excelência (já o era o excelente "Bowling for Columbine", mas menos), o que desde logo abona a seu favor, pelo lado comercial (já ultrapassou a impressionante marca dos 100 milhões de dólares) e pela capacidade de fomentar debates interessantes (sobre a política, especialmente, e não só a norte-americana). Porquê? Porque, usando as técnicas clássicas do documentário, ousa descomplexadamente tirar partido, ser parcial, usando os factos para veicular uma opinião (necessariamente pessoal, logo, discutível). Claro, a sua opinião é que o presidente norte-americano George W. Bush é incompetente (para além de ilegítimo no cargo) e a política da sua administração é prejudicial para os EUA e o resto do mundo. Obviamente discutível, essa opinião é construída com base em factos reais apurados pelo realizador ou do domínio público.
Se este filme fosse uma peça jornalística, seria sem dúvida um editorial (ou um artigo - desenvolvido - de opinião), nunca uma reportagem. Ou seja, o autor usa a verdade para emitir , com maior ou menor talento, a sua interpretação dela. O objectivo é à partida assumido. Parece-me ser isso que irrita tanto alguns dos detractores de "Fahrenheit 9/11". É que acusar Moore de manipulador seria, neste contexto, semelhante a fazer o mesmo com os directores de jornais quando escrevem editoriais ou com os cronistas das mesmas publicações. Monsieur de La Palisse, n'est-ce pas?
Posto isto, acho que os evidentes méritos artísticos da fita colidem com alguma falta de subtileza (ou mesmo grosseria) no tratamento de algumas questões. Por exemplo, satirizar a lista de países da coligação que apoiou a invasão do Iraque citando apenas o Palau, a Islândia, a Costa Rica, etc., quando sabemos que países como o Reino Unido e a Espanha também a integravam, é uma opção obviamente falhada. Contudo, no geral, é hábil a montagem que Moore faz de imagens de arquivo, entrevistas e outros materiais. Mais, é espantoso como consegue - combinando horror, humor e drama - fazer de um documentário, invulgar, é certo, um filme-pipoca para entreter as massas dos multiplexes. E, esperemos nós, fazê-las pensar (espera Moore, votar contra Bush nas eleições de Novembro).
Saliento, por fim, duas sequências impressionantes. Primeiro, as imagens inéditas de Bush sem saber o que fazer durante largos minutos quando lhe contam ao ouvido do segundo embate sobre as torres gémeas do World Trade Center (só essa cena seria certamente o seu atestado de óbito político em qualquer país normal). Depois, o desespero de uma mulher iraquiana perante o violento ataque sofrido por seus familiares civis (só essa cena seria certamente o suficiente para atestar da injustiça daquela guerra).
Impressionante é ainda pensarmos nas teias de interesses económicos que se tecem em redor do poder político e que dele se alimentam (nos EUA como em qualquer país subjugado pelo poder económico). Neste capítulo, o filme é particularmente eficaz a desmascarar ligações perigosas ao mais alto nível e a mostrar a imoralidade já conhecida, a de que a guerra pode ser uma indústria lucrativa. Questões essenciais do nosso mundo.
Questão menor é saber se o filme mereceu ou não a Palma de Ouro. Na minha opinião, mesmo não conhecendo os outros filmes em competição, ousava responder que não, pois a sua qualidade não é excepcional. O seu grande mérito é mesmo o de fomentar discussões. E esse não é nada pequeno.
Em suma, bom.
Se este filme fosse uma peça jornalística, seria sem dúvida um editorial (ou um artigo - desenvolvido - de opinião), nunca uma reportagem. Ou seja, o autor usa a verdade para emitir , com maior ou menor talento, a sua interpretação dela. O objectivo é à partida assumido. Parece-me ser isso que irrita tanto alguns dos detractores de "Fahrenheit 9/11". É que acusar Moore de manipulador seria, neste contexto, semelhante a fazer o mesmo com os directores de jornais quando escrevem editoriais ou com os cronistas das mesmas publicações. Monsieur de La Palisse, n'est-ce pas?
Posto isto, acho que os evidentes méritos artísticos da fita colidem com alguma falta de subtileza (ou mesmo grosseria) no tratamento de algumas questões. Por exemplo, satirizar a lista de países da coligação que apoiou a invasão do Iraque citando apenas o Palau, a Islândia, a Costa Rica, etc., quando sabemos que países como o Reino Unido e a Espanha também a integravam, é uma opção obviamente falhada. Contudo, no geral, é hábil a montagem que Moore faz de imagens de arquivo, entrevistas e outros materiais. Mais, é espantoso como consegue - combinando horror, humor e drama - fazer de um documentário, invulgar, é certo, um filme-pipoca para entreter as massas dos multiplexes. E, esperemos nós, fazê-las pensar (espera Moore, votar contra Bush nas eleições de Novembro).
Saliento, por fim, duas sequências impressionantes. Primeiro, as imagens inéditas de Bush sem saber o que fazer durante largos minutos quando lhe contam ao ouvido do segundo embate sobre as torres gémeas do World Trade Center (só essa cena seria certamente o seu atestado de óbito político em qualquer país normal). Depois, o desespero de uma mulher iraquiana perante o violento ataque sofrido por seus familiares civis (só essa cena seria certamente o suficiente para atestar da injustiça daquela guerra).
Impressionante é ainda pensarmos nas teias de interesses económicos que se tecem em redor do poder político e que dele se alimentam (nos EUA como em qualquer país subjugado pelo poder económico). Neste capítulo, o filme é particularmente eficaz a desmascarar ligações perigosas ao mais alto nível e a mostrar a imoralidade já conhecida, a de que a guerra pode ser uma indústria lucrativa. Questões essenciais do nosso mundo.
Questão menor é saber se o filme mereceu ou não a Palma de Ouro. Na minha opinião, mesmo não conhecendo os outros filmes em competição, ousava responder que não, pois a sua qualidade não é excepcional. O seu grande mérito é mesmo o de fomentar discussões. E esse não é nada pequeno.
Em suma, bom.
18 de agosto de 2004
"Má Educação" (La Mála Educación, 2004), de Pedro Almodóvar
Digamos que Almodóvar perdeu um pouco do seu brilho com esta incursão pelas memórias de infância. Por aqui não passa aquela vivacidade louca que tanto nos comoveu noutros filmes (como "Fala com Ela"). Isso não significa, contudo, que "Má Educação" seja desprovido de qualidades e interesse. Apenas nos desiludimos por estarmos à espera do maravilhamento que o autor nos começara a habituar.
É uma história negra com um argumento repleto de peças para encaixar. Possui reminiscências hitchcockianas - aproximando-se do policial na mesma medida a que se afasta do melodrama - mas aqui só os homens são fatais.
Às marcas habituais de Almodóvar - o retrato festivo e plural da sexualidade, a abordagem directa da toxicodendência, o amor intra-sexual - este filme acrescenta-lhe a vivência da infância num colégio católico corrupto e uma viagem aos meandros do próprio cinema. São precisamente estas "novidades" que não estão à altura das suas imagens de marca. A crítica à hipócrita educação católica (com referências à pedofilia) não traz nada de novo, bem como o aproveitamento cinematográfico das histórias reais, tentando o piscar de olho à relação entre realidade e ficção. Na história do filme e na própria vida do autor.
No entanto, é um bom filme que se segue com bastante interesse. E Gael Garcia Bernal faz um travesti muito giro!
Em suma, bom.
É uma história negra com um argumento repleto de peças para encaixar. Possui reminiscências hitchcockianas - aproximando-se do policial na mesma medida a que se afasta do melodrama - mas aqui só os homens são fatais.
Às marcas habituais de Almodóvar - o retrato festivo e plural da sexualidade, a abordagem directa da toxicodendência, o amor intra-sexual - este filme acrescenta-lhe a vivência da infância num colégio católico corrupto e uma viagem aos meandros do próprio cinema. São precisamente estas "novidades" que não estão à altura das suas imagens de marca. A crítica à hipócrita educação católica (com referências à pedofilia) não traz nada de novo, bem como o aproveitamento cinematográfico das histórias reais, tentando o piscar de olho à relação entre realidade e ficção. Na história do filme e na própria vida do autor.
No entanto, é um bom filme que se segue com bastante interesse. E Gael Garcia Bernal faz um travesti muito giro!
Em suma, bom.
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