11 de junho de 2004

«A Paixão de Cristo» (The Passion of the Christ, 2004), de Mel Gibson

O inesperado fenómeno de bilheteira de 2004 é, afinal, um filme que se destaca antes de mais pela sua enorme intensidade. É impossível ficar indiferente ao sofrimento atroz daquela personagem que sabemos ser tão especial e, principalmente, sabemos que foi real. A sua força, crença e motivação são tão extraordinárias que se percebe como podem ter sido os alicerces de uma religião. O cinema dá-nos aqui a ver com uma força que não tem paralelo nas outras manifestações da arte, como a pintura ou a escultura, o calvário de Jesus Cristo enquanto exorcismo do imaginário universal. Concretizando, trata-se de filmar o histórico símbolo vivo da bondade com uma crueldade que inspire a compaixão e depois a redenção - é preciso ver o Homem a fazer o pior para fazer o Homem melhor?
Uma das mais interessantes sensações que o filme me despertou foi a do confronto entre a minha percepção da educação cristã na infância e juventude e a história feita de carne e espírito que Gibson plasmou na tela. Tratou-se de me reconfrontar com a dúvida essencial da fé. Mais, tratou-se de perceber como a mesma história pode ter ângulos, leituras e contaminações tão plurais, mantendo-se sempre fascinante no seu mistério, e por vezes contraditória.
Mais importante que avaliar o rigor dos factos narrados e a estéril discussão do anti-semitismo, é afirmar que o filme exibe uma vontade assinalável de realismo. Quer pela forma como dá a ver a tortura exercida sobre o corpo de Cristo, quer pelo efeito muito conseguido de ser falado nas línguas mortas da época. Contudo, em relação à primeira questão, deve dizer-se que ela encerra um pau de dois bicos: se por um lado a brutalidade física o aproxima da noção de real - e por isso muito impressionante (longe de outras versões encenadas do calvário com distanciamento e pudor) -, por outro exagera na dilatação dos limites da verosimilhança.
Filme corajoso e de rara intensidade, "A Paixão de Cristo" não deixa de ser minado por algumas más opções. A saber: banda-sonora muito intrusiva, sequências em câmara lenta e todas as cenas em que intervém Judas. Isso não apaga, contudo, a sua importância enquanto objecto de questionamento e de fruição. Já agora, que sirva para verificarmos aquilo que não mudou em 2000 anos...
Em suma, bom.

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