Ainda maior fenómeno de bilheteira do que o seu antecessor, "Shrek 2" é mais uma dose de excelente divertimento, não mudando muito aquilo que fez o sucesso do anterior. As divertidíssimas personagens centrais e respectivas vozes mantêm-se (Shrek, o burro e a pricesa Fiona), sendo apenas eliminado John Lithgow (Lord Farquad) e contratados Antonio Banderas (um delicioso Gato das Botas), John Cleese (pai de Fiona), Julie Andrews (mãe de Fiona) e Jennifer Saunders (uma fada-madrinha empresária).
A animação 3D é muito boa, como no anterior, mas o grande trunfo do(s) filme(s) é o fantástico sentido de humor e os deliciosos "gags" - grande parte deles impossíveis de acompanhar pelas crianças. A paródia às personagens da Walt Disney mantém-se acutilante, assim como a deliciosa paródia cinéfila (um autêntico programa que atinge "O Senhor dos Anéis", "Missão Impossível", "Flashdance" ou "Os Fabulosos Irmãos Baker", entre muitos outros).
Ainda que ligeiramente inferior ao primeiro - talvez pelo efeito novidade que aqui não existe -, "Shrek 2" é um filme irresistível que se acompanha com um enorme prazer. E já está o terceiro em preparação...
Em suma, muito bom.
25 de junho de 2004
24 de junho de 2004
"O Despertar da Mente" (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), de Michel Gondry
Ninguém parece ter dúvidas de que Charlie Kaufman é um dos mais talentosos e originais argumentistas do presente, bem como ninguém duvidará que este é um filme de argumentista. Kaufman lança-se aqui numa abordagem desencantada do amor, dissecando o processo mental que o origina, construindo com isso um insólito filme romântico. O romantismo aqui reside no facto de o amor não ser visto como um simples e frágil fruto do acaso, mas antes uma espécie de reacção química recorrente que impele um ser para um outro. É isso que acontece reciprocamente entre Joel (Jim Carrey, melancólico como nunca) e Clementine (Kate Winslet, seguríssima no seu retrato de insegura), assim como entre Mary (Kirsten Dunst) e o médico (Tom Wilkinson). Sendo verdade que a ideia de romatismo encenada é forte, não deixa de ser triste (mas real) pensar na erosão temporal que afecta qualquer relação. O filme incorpora simultanemante o paraíso e o inferno do amor. Ou seja, celebra a energia fulgurante que o sentimento imprime nos amantes e confronta-nos com o enfraquecimento desse sentimento, numa lógica que é quase maníaco-depressiva.
As memórias têm um papel central no amor como na vida, sendo a base da construção da identidade. Ora, a mera possibilidade técnica de as apagar selectivamente (que o filme propõe) põem-nos tão em causa enquanto seres humanos que só poderia gerar o arrependimento após o despoletar do processo. Joel foge por entre os meandros da sua própria mente quando percebe que o desgosto de amor sempre é preferível à perda da identidade.
Apesar de perder na comparação com os filmes de Kaufman realizados por Spike Jonze (estes levam mais longe o seu delírio e são formalmente mais ricos), "O Despertar da Mente" é uma história complexa, audaciosa, fatal (mas esperançosa), funcionando como contraponto ao mundo cor-de-rosa que as histórias de amor no cinema costumam retratar. Já para não falar das ideias de romantismo veiculadas pela televisão, a galáxias de distância desta...
Em suma, bom.
As memórias têm um papel central no amor como na vida, sendo a base da construção da identidade. Ora, a mera possibilidade técnica de as apagar selectivamente (que o filme propõe) põem-nos tão em causa enquanto seres humanos que só poderia gerar o arrependimento após o despoletar do processo. Joel foge por entre os meandros da sua própria mente quando percebe que o desgosto de amor sempre é preferível à perda da identidade.
Apesar de perder na comparação com os filmes de Kaufman realizados por Spike Jonze (estes levam mais longe o seu delírio e são formalmente mais ricos), "O Despertar da Mente" é uma história complexa, audaciosa, fatal (mas esperançosa), funcionando como contraponto ao mundo cor-de-rosa que as histórias de amor no cinema costumam retratar. Já para não falar das ideias de romantismo veiculadas pela televisão, a galáxias de distância desta...
Em suma, bom.
11 de junho de 2004
«A Paixão de Cristo» (The Passion of the Christ, 2004), de Mel Gibson
O inesperado fenómeno de bilheteira de 2004 é, afinal, um filme que se destaca antes de mais pela sua enorme intensidade. É impossível ficar indiferente ao sofrimento atroz daquela personagem que sabemos ser tão especial e, principalmente, sabemos que foi real. A sua força, crença e motivação são tão extraordinárias que se percebe como podem ter sido os alicerces de uma religião. O cinema dá-nos aqui a ver com uma força que não tem paralelo nas outras manifestações da arte, como a pintura ou a escultura, o calvário de Jesus Cristo enquanto exorcismo do imaginário universal. Concretizando, trata-se de filmar o histórico símbolo vivo da bondade com uma crueldade que inspire a compaixão e depois a redenção - é preciso ver o Homem a fazer o pior para fazer o Homem melhor?
Uma das mais interessantes sensações que o filme me despertou foi a do confronto entre a minha percepção da educação cristã na infância e juventude e a história feita de carne e espírito que Gibson plasmou na tela. Tratou-se de me reconfrontar com a dúvida essencial da fé. Mais, tratou-se de perceber como a mesma história pode ter ângulos, leituras e contaminações tão plurais, mantendo-se sempre fascinante no seu mistério, e por vezes contraditória.
Mais importante que avaliar o rigor dos factos narrados e a estéril discussão do anti-semitismo, é afirmar que o filme exibe uma vontade assinalável de realismo. Quer pela forma como dá a ver a tortura exercida sobre o corpo de Cristo, quer pelo efeito muito conseguido de ser falado nas línguas mortas da época. Contudo, em relação à primeira questão, deve dizer-se que ela encerra um pau de dois bicos: se por um lado a brutalidade física o aproxima da noção de real - e por isso muito impressionante (longe de outras versões encenadas do calvário com distanciamento e pudor) -, por outro exagera na dilatação dos limites da verosimilhança.
Filme corajoso e de rara intensidade, "A Paixão de Cristo" não deixa de ser minado por algumas más opções. A saber: banda-sonora muito intrusiva, sequências em câmara lenta e todas as cenas em que intervém Judas. Isso não apaga, contudo, a sua importância enquanto objecto de questionamento e de fruição. Já agora, que sirva para verificarmos aquilo que não mudou em 2000 anos...
Em suma, bom.
Uma das mais interessantes sensações que o filme me despertou foi a do confronto entre a minha percepção da educação cristã na infância e juventude e a história feita de carne e espírito que Gibson plasmou na tela. Tratou-se de me reconfrontar com a dúvida essencial da fé. Mais, tratou-se de perceber como a mesma história pode ter ângulos, leituras e contaminações tão plurais, mantendo-se sempre fascinante no seu mistério, e por vezes contraditória.
Mais importante que avaliar o rigor dos factos narrados e a estéril discussão do anti-semitismo, é afirmar que o filme exibe uma vontade assinalável de realismo. Quer pela forma como dá a ver a tortura exercida sobre o corpo de Cristo, quer pelo efeito muito conseguido de ser falado nas línguas mortas da época. Contudo, em relação à primeira questão, deve dizer-se que ela encerra um pau de dois bicos: se por um lado a brutalidade física o aproxima da noção de real - e por isso muito impressionante (longe de outras versões encenadas do calvário com distanciamento e pudor) -, por outro exagera na dilatação dos limites da verosimilhança.
Filme corajoso e de rara intensidade, "A Paixão de Cristo" não deixa de ser minado por algumas más opções. A saber: banda-sonora muito intrusiva, sequências em câmara lenta e todas as cenas em que intervém Judas. Isso não apaga, contudo, a sua importância enquanto objecto de questionamento e de fruição. Já agora, que sirva para verificarmos aquilo que não mudou em 2000 anos...
Em suma, bom.
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